Carta de uma cerejeira amarela em flor, Kawase.
Naomi Kawase é uma cineasta japonesa que está em atividade
desde o final dos anos 80. Seu cinema possui traços vanguardistas, e sua
narrativa distorce o espaço entre a ficção e a não ficção. Seus primeiros
trabalhos são em uma linha realista e autobiográfica. Poderíamos chamá-los de
documentários, se ela não odiasse este termo. Presente neste longa, ela mesma
pontua que prefere o termo “Memória”, porque a palavra documentário tem
entonação de passado, algo antigo, muito velho. E ela afirma que já a memória é
como algo que se pode ter para sempre.
O longa é sobre Nishii Kazuo, um renomado crítico de
fotografia e editor-chefe de uma revista importante no Japão. O projeto nasceu
quando o mesmo realizou uma ligação para Kawase pedindo que ela filmasse seus
últimos tempos de vida, já que estava fadado a morrer em cerca de 2 meses. O
pedido fixou-se na mente de Kawase, de maneira que ela sentiu um senso de dever em
realizar tal feito. Então ela começa a visitar o Sr. Nishii no hospital,
filmando seus derradeiros suspiros.
“Meu destino é cair como uma flor de cerejeira.”
Este é o bonito haikai que saí instantaneamente da cabeça de
Nishii quando Kawase pede a ele para compor um, logo no começo do filme. Ele é
uma figura melancólica, com olhos cheios de uma essência calma e chorosa, com
uma aura transparente ao seu redor. Investigamos sua ausência de expressões
faciais e sua maneira de olhar, para descobrirmos quem terá sido ele. Ao
começarmos a assistir imaginamos que todos os segredos de sua vida serão
desvendados e que ficaremos muito próximos a ele. Isso não acontece. O que
acontece relativo a proximidade é apenas a empatia que sentimos. E o espaço que sobra dá
lugar a observação e a imaginação de que segredos ele poderia ter, de que
espécie de vida ele teria vivido. Ficamos sabendo bem pouco. Mas o pouco que
sabemos pelas ínfimas pistas que ele dá, é de que se sente como tendo sido um
homem comum, pontuando até em um dado momento que ele teria sido uma nulidade
como homem, que desejava ter sido aventureiro. No decorrer do longa, Kawase e
ele conversam sobre o sentido da vida ou a ausência de sentido, e sobre a arte
também. O que seria a fotografia para ele e o que seria o cinema para ela. Sr.
Nishii é o personagem real de um retrato intimista sobre vacuidade que se
mescla ao medo e fina dor de saber que se vai morrer. Em alguns momentos ele
está a contemplar o nada e uma lágrima vagarosa escorre como uma pequena gota
de chuva em um vidro. Ficamos a imaginar o que se passa em sua mente quando ele
está envolto em seus pequenos ou longos silêncios.
A fotografia é “suja” e simplista, o que torna tudo inocente
e advoga a veracidade poética da obra. Kawase filma o quarto do hospital, o doente enquanto dorme, seus lençóis, o criado mudo com fotografias. A janela,
as árvores, as paredes brancas, uma tv, os vasos de flores no chão. É tudo
verdadeiro, suave como o olhar humano. Um estudo breve sobre duas naturezas. A
natureza de Gaia e a natureza da morte. Como sempre, os orientais com esta
beleza única de comparar os fenômenos da vida com os fenômenos da natureza. E
isto se configura nas conversas de Nishii e Kawase, e também nas delicadas
imagens das árvores do Hospital.
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