Agatha, ou As Leituras Ilimitadas, 1981
Marguerite Duras é uma cintilante artista por inúmeros fatores; não
apenas escreveu poemances, atenho-me a caracterizá-los assim por serem
verdadeiras poesias em forma de romance, como aventurou-se no meio
cinematográfico, ganhando uma proeminência plausível. Nasceu no
Vietnã, na época em que o mesmo era conhecido como Indochina
Francesa, antes da revolução liderada por Ho Chi Minh. Com apenas quinze anos e meio, uma
experiência romântica com um chinês, bem mais velho e elegante, suscitou, no futuro, um dos seus mais proeminentes e polêmicos trabalhos, O
Amante. Escreveu o roteiro de Hiroshima, Mon Amour, que
foi dirigido por ninguém menos do que Alain Resnais, um dos
expoentes da Nouvelle Vague; trabalhou com Gérard Depardieu quando o ator ainda era um calouro no ramo cinematográfico, na direção do longa-metragem Nathalie Granger, em 1972; e uma extensa pilha de romances e contos singulares, airosos.
Em Agatha, ou As Leituras Ilimitadas, roteiro baseado em um romance lançado no mesmo ano que o longa, 1981, o cinema de Marguerite Duras casa-se com a sua escrita de modo a
assombrar e a encantar; assombra, pois o jogo de imagens dispersas molda um ambiente
funéreo e acabrunhado; encanta, pois, o mesmo jogo de imagens dispersas
acoplado com o diálogo dos dois irmãos rememorando seu amor
incestuoso, a infância que não volta mais, os momentos na praia,
descritos num tal molejo que até me fez lembrar O Verão de 80,
o estratosférico amor entre a jovem e o menino
dos olhos cinzentos, torna o longa-metragem tão denso e furtivo que nos toca os ombros e nos arrepia a nuca.
O mar
encontra-se adormecido, de modo que o quebrantar das ondas não faz
muito barulho. O céu, nebuloso. É inverno. Numa casa qualquer, que
até então encontrava-se inabitada, dois irmãos, dois amantes,
atados não apenas pelo sangue, mas sim por um amor incomensurável,
iniciam um melancólico diálogo sobre o passado. O espectador é o
invasor, uma pequena mosca que pousa e escuta o diálogo dos dois
amantes que estão a ponto de caçarem seus rumos. A luz invernal
incide sobre a casa. Os cômodos estão quietos como se não houvesse
ninguém; um manto de tristeza cobre cada centímetro daquele local.
As
memórias são construídas a partir do diálogo. Em suas vozes, uma entonação branda e sofrida; o ambiente externo,
as areias com as conchas, os seixos, as ruelas úmidas, as ondas
quebrantando-se, as nuvens espessas avisando uma chuvarada invernal
pintam todo o quadro melancólico de um amor condenado ao fim – e
não apenas isso, mas o silêncio após muitos gritos, de algo que um
dia estivera ali, embora não se encontra mais. No passado, como um
oásis; agora, tudo está nebuloso e vazio. Dentro da casa lúgubre e abastada com divãs e cadeiras de madeira, há
momentos em que nós, os espiões, avistamos os irmãos passeando
pelos cômodos; há vezes em que vemos Agatha encolhendo-se, abraçando o seu próprio corpo, tateando as paredes, como se de
algum modo através disso pudesse sentir mais daquele momento vivido
naquele local há anos atrás.
Agatha, ou
As Leituras Ilimitadas, é um melancólico romance invernal sobre o
derradeiro de um amor escondido. Os corpos sempre se
repelindo, distantes, enfatizam a vontade iminente de tornarem-se
amantes, por mais paradoxal que isso possa soar. Esses corpos, repletos de dor, estão partindo para sempre. Precisam ir. E não importa onde ela for, se ele for atrás, ela irá escapar dele,
como uma fugitiva da lei, pois o amor dos dois, aos olhos alheios, e aos olhos de Agatha, é um nó que precisa ser desatado. Essa busca por uma fuga não enfatiza um
possível fim do amor, pois ambos estão cônscios de que se amarão
sempre, e estarão sempre atados de algum modo; as lembranças de
suas infâncias, dos momentos na praia, do medo que os acometia, dos
atos apaixonados às noites onde ninguém mais encontrava-se
presente; a partida simboliza a quebra do relacionamento, não de
suas emoções um para com o outro. Desse modo, Marguerite Duras nos propõe que, por mais que ambos estejam fadados a ir de encontro com o novo em suas vidas, o incomensurável amor incestuoso estará sempre presente em ambos.
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