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Num Ano de Treze Luas, Rainer Werner Fassbinder, 1978

18:17 Igor Damásio 0 Comentários Categoria :



Nos arredores marginais da Alemanha do pós-guerra, Elvira encontra-se, à luz da alva, despida de todo fausto, com roupas de homem, à procura de dinheiro por intermédio do sexo com homossexuais. Um discreto homossexual começa a possui-la, mas logo é acometido por uma abrupta surpresa: ao invés de tocar em um pênis e satisfazer-se com o mesmo, não, toca em uma vagina. Embora não seja uma vagina de verdade, apenas uma sintética pós-operação, o homossexual logo torna-se uma fera ao perceber que foi enganado. E os seus amigos, logo próximos dele, provavelmente na intenção de possui-la também, acometidos pelo mesmo asco da figura, começam a despi-la e socá-la e chutá-la até que, finalmente, um sensato diz para deixá-la ir. E Elvira vai, com as mãos e os olhos no chão, engatinhando feito bebê, cruzando a linha do trem e penetrando em um arbusto, com o rosto socado e sem o dinheiro.

Em um ano de treze luas, todas as enzimas catalisam reações que fendem a tendência do ser de estar em sua homeostase. Ou seja, uma nuvem de corvos cobrem o céu da humanidade, trazendo a degradação, os infortúnios e todas as tragédias possíveis que podem acontecer na vida de alguém. Para aqueles que são movidos por ondas intensas de emoções, a tragédia pode chegar a um nível estratosférico; a atmosfera do ser é violentada por gases tóxicos; as plantas morrem, pois não há energia luminosa alguma para ser capturada pela clorofila, apenas a mais fúnebre tragédia.

O discurso cêntrico do longa-metragem, uma obra de arte, diga-se de passagem, é a decadência; talvez seja o trabalho mais pessoal do diretor Rainer Werner Fassbinder, que se baseou no suicídio de seu amante, Armin Meier, para compôr um espetáculo de humor negro sobre os últimos dias de Elvira Weishaupt na terra, traçando uma linha de tempo linear que nos permite conhecer, não visualmente, mas por intermédio dos próprios lábios da personagem, a sua trajetória de vida como um homem e o processo - tal como é, o motivo - de ter se tornado mulher em Casablanca. O fruto que um dia fora maduro agora encontra-se podre, degradando-se e pronto para ir.

Todos os motivos para Elvira negar a sua própria existência são jogados perante a nossa face durante todo o longa-metragem, seja devido a sua negação por ter se tornado mulher, seja pela deixa repentina e decidida de Christoph, ou pela burrada que entrou devido a entrevista dada à um jornal local sobre Anton Saitz, seu antigo amor e a razão por ter feito a cirurgia de mudança de sexo, que, atualmente, encontra-se ostentando sua riqueza e dando ordens para homens bem mais velhos do que ele e bem mais corpulentos do que ele que poderiam deixá-lo no chão com um só tapa, mas, mesmo assim, provando que a força física está abaixo do poder que um ser tem sobre você, eles ainda o servem.

Elvira conta com a ajuda de Zora, que apresenta-se não só como uma relva aconchegante ao qual Elvira pode expor as suas insatisfações, mas sim um ser peculiar, com sua essência infanto-juvenil depravada e a sua carisma para com a personagem, para tornar possível a amarga fluidez da narrativa. Irene, como a ex-mulher de Elvira, e a filha da personagem em sua época Erwin, entregam ao filme a sua principal narrativa - o reencontro com Anton Saitz, com "ai", há anos, após a ex-mulher implorar para que resolva a burricada que fez com o nome do homem. Cômico e grotescamente único, o reencontro com Anton traz o passado, as lembranças de uma paixão jamais correspondida, da mudança de diretriz do personagem Erwin Weishaupt que possibilitou o surgimento de uma figura única - Elvira Weishaupt. E uma experiência única de observar um suicídio de um negro insatisfeito de sua vida com embases filosóficos sobre o suicídio e a não aceitação do viver.

Assim como algumas espécies de plantas que necessitam de sol para desatar algum momento, o ser humano necessita dias ensolarados, pois a ausência dos mesmos podem gerar flagelos acima de flagelos, lixo sobre lixo - além de nenhuma evolução pessoal. E, no desenlace, quando os pulmões estão cheios de ar e os olhos cheios de lágrimas para derramar-se à alguém e pedir por obséquio, pois a faceta da dor é tamanha, um ombro, uma mão, observa que não há ninguém a vista, todos estão preenchidos, as velas de suas casas acesas, as janelas fechadas, assim como as portas trancafiadas para que não entre ninguém. A reflexão ante morte é a ausência de todos ao redor, mesmo que haja uma turba. Para aqueles que ficam, restarão ainda os sussurros dos ventos fúnebres, as palavras pronunciadas que logo estarão no fundo do mar do esquecimento, assim como as caixas de lixo nuclear - ou, no caso de Elvira, ou Erwin, em uma pequenina fita gravada tempos antes de seu derradeiro.






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