A Mulher Pública, de Andrzej Zulawski
O longa-metragem, como grande parte da filmografia do maravilhoso cineastra, diga-se de passagem, aborda o desalinho, os processos que levam gradativamente o ser humano ao caos. É nessa contextura que conhecemos Ethel, uma jovem atriz que busca um papel em um filme intitulado O Possuído, obra baseada em um dos escritos anti-niilísticos de Fyodor Dostoyevsky, dirigido por um diretor teatral e insano chamado Lucas Kesling, cujo gingado galante e a intelectualidade fazem-na abruptamente interessar-se por ele.
À medida que somos apresentados a personagem, sua vida pessoal também o é de modo nu e cru; ensaios embasados em danças que um estranho fotógrafo paga por; a atual situação familiar, ao qual sua mãe, louca, vê-se à beira de um penhasco contando os segundos para mergulhar em sua mais densa insanidade inelutável. Em cenas aos quais fazem-nos refletir sobre o quão julgamos o ator em superfície, não atendo-nos aos detalhes de suas vidas, de que também são seres humanos, providos de uma bactéria como qualquer um ao qual, encontrando-se com sua anti-matéria também tornaria-se lixo espacial. Os infortúnios, as desgraças, não apontam o dedo para quem é mais belo e para quem tem mais, paira feito uma nuvem sobre todos. Ou, como proferido por Christiane F, "a sujeira está em toda parte. É só dar uma olhada."
Após o assassinato brutal da estrela decadente, ao qual nos sabemos que foi Kesling quem o cometeu, Ethel, questionando-o, é retirada o filme. Sabendo do que sabe, procura o marido da morta, o refugiado da Checoslováquia aspirante a ator, ao qual, inconsolado com a morte da mulher molda a protagonista como a mesma, apaixonando-se na tentativa de reconstruir sua mulher já não presente em seus braços, mas no antro da morte. Ambos se apaixonam de um modo teatral; visível na perfomance dos corpos, a teatralização, tanto em cenas enquanto ambos conversam, quanto em cenas ao qual ambos fazem amor. A solidão do rapaz é diluída pela presença de Ethel e assim o é com a atriz, um mutualismo.
Millan, um ser performático, sempre vivendo em seus devaneios, atuando cimentado numa teoria de que a vida é um palco e que o ser humano é um ator sem roteiros, é enganado por Kesling que oferece uma boa quantia em dinheiro para assassinar um Arcebispo publicamente. É nítido como vemos a influência de Kesling de modo amplo no filme, ao qual possui uma visão filosófica de que a desordem e a violência são os ingredientes necessários para alcançar a sociedade utópica envolvida com o manto do amor. O diretor, reconhecendo o poder de Ethel sobre ele e sobre a sua própria pessoa, pede para que ela volte à produção. O desalinho é evocado com a abrupta partida de sua mãe a com a preocupação com relação a vida ao qual Millan atualmente vive, como um fugitivo.
(Em uma das cenas mais emblemáticas do longa-metragem, a personagem, à medida que dança violentamente, chora, chora e chora, pondo toda a dor presente em seu sua própria existência para fora.)
Zuwaski também nos apresenta cenas de ação, com direitos a perseguições, tiros e acidentes de carro. Seus personagens descem os degraus para seus próprios infernos de modo gradual, como se enfeitiçados pelo mesmo, fitando-os na expectativa de tateá-los como se de algum modo a perfeição só pudesse ser encontrada na anarquia, na balbúrdia, no caos. O diretor usa a metalinguagem, isto é, o filme dentro do filme, não só como um plano de superfície sem eira nem beira, o espectador imerge por trás dos bastidores, visitando os personagens em seus mais profundos sentidos. Tudo culmina no desalinho, afinal, há quem diga que o artista precisa sentir em si mesmo o que quer expressar ao mundo. Através da arte, representamos a vida. Ou através da vida, representamos a arte. Não importa, pois ambas estão acopladas para a representação uma da outra. A busca pelo perfeccionismo em Kesling é a busca pelo perfeccionismo do homem; a teatralização da dor, para Millan e Ethel, é a busca pelo subterfúgio que o homem descobre na arte. Talvez seja por isso que a protagonista já não aguentava sê-la, interpretar a si mesma, tamanho é o peso da vida que atina nos mistérios da arte uma maneira de escapar, interpretando outrem.
Apesar de Andrzej Zulwaski sempre ter caminhado por uma estrada insólita, buscando abordar os mais bizarros temas como o achamento de uma nova civilização, a insatisfação da mulher perante ao casamento, a loucura e o caos como características presentes na vida dos personagens, aqui, em A Mulher Pública, ambos são atirados abruptamente, não com uma desconstrução, mas há uma construção por meio de uma difusão. O assassinato da estrela decante pode tornar-se aqui um exemplo, pois modifica o interior de vários outros personagens, alastrando-se feito uma infecção. Tudo isso durante uma produção cinematográfica cuja história aborda uma teoria alicerçada na desarrumação para uma arrumação. O longa-metragem, analisado de um modo mais detalhista, pode tornar-se tortuoso aos olhos do espectador, obrigando-o a enxergar que o desalinho está enraizado na sociedade e presente em cada um de nós, sendo você como for e o que for. É um descortinar de uma grande cortina ao qual o cinema hollywoodiano sempre buscou abordar, catalisado ainda no pós-guerra, com seus maravilhosos finais felizes para os personagem. É o limpar as lentes oculares ou emergir de uma cegueira branca, abrindo novos horizontes.
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